© AFP Gilmar Mendes, durante o julgamento do Habeas Corpus do Lula. |
Às vezes é o povo, a sociedade, que
intui melhor que os próprios legisladores o espírito que subjaz à letra fria da
lei. Um exemplo: a discussão neste momento no Supremo sobre
a prisão depois da condenação em segunda instância. Os magistrados legalistas,
que são a favor de que todos os recursos sejam esgotados, dizem zelar pela lei
da presunção de inocência. É verdade que mesmo o maior criminoso deve ter
garantido o direito à defesa. Nada mais trágico para a dignidade humana do que
a condenação de um inocente.
Ao mesmo tempo, o espírito da
lei é pisoteado muitas vezes. E é a quebra desse espírito que as ruas advertem
quando se defende para os poderosos a possibilidade de recursos infinitos a
todas as instâncias para evitar a prisão. Algo que pode levar anos e acabar
favorecendo aqueles que têm a possibilidade de pagar advogados que mantenham o
condenado em liberdade. E os outros? Os pobres que não têm esses recursos? Para
eles é impossível eternizar o processo até a prescrição da sentença. Somos
realmente todos iguais perante a lei?
É mais fácil que seja a
sociedade e não os legisladores quem indique essa dissonância que leva a
distinguir os criminosos poderosos dos simples mortais. Estamos, portanto,
diante de dois direitos conflitantes: o da presunção de inocência e o da
Justiça que deve ser igual para todos. São dois conceitos igualmente
importantes que devem valer para todos ou acabam prejudicando os menos
favorecidos.
Dado que com aqueles que não
são poderosos os escrúpulos pela presunção de inocência acabam sendo esquecidos
e eles são, portanto, arrastados para a prisão sem mais, seria mais próximo da
Justiça igualitária que todos, pobres e ricos, começassem a cumprir a pena ao
mesmo tempo. Com presos sem nome há menos escrúpulos do que com os famosos e
eles são presos tantas
vezes antes mesmo de serem julgados. Quantos milhares desses presos
anônimos apodrecem nas prisões nessa situação? No Brasil aparentemente eles são
mais de duzentos mil.
Mesmo com prisão depois da
condenação em segunda instância, os presos
privilegiadoscontinuarão levando a melhor, pois permanecerão menos
tempo atrás das grades por disporem de advogados que fornecem habeas
corpus, que na maioria dos casos lhes permitem cumprir a pena em
liberdade. Pergunte-se a Gilmar Mendes, tão cheio de compaixão pelos presos de
luxo. Os outros, aqueles sem advogados presunçosos, continuarão presos enquanto
Deus quiser, abandonados à própria sorte.
Daí que, diante de dois
direitos legítimos, o da presunção de inocência e o de que todos devem ser
iguais perante a lei, a sociedade acabe vendo o primeiro como um biombo para
evitar a prisão dos privilegiados e se sinta mais sensível ao outro direito não
menos sagrado de que a lei é a mesma para todos. São as ruas que entenderam,
por exemplo, que Carmen Lúcia e Barroso –mais do que Gilmar Mendes– estão mais
próximos do espírito da lei do que de sua letra fria. Ou será que alguém
acredita que, se, por exemplo, Lula foi preso, permanecerá na cadeia o mesmo
tempo de um condenado comum e anônimo, réu pelos mesmos crimes que ele, mas sem
advogados ilustres e magistrados amigos? Quando os membros do Supremo reclamam
que não podem ser pressionados pelo clamor das ruas, esquecem que muitas vezes
a sensibilidade e o senso comum da sociedade são os melhores interpretes do
espírito da lei.
Em sua última coluna para
este jornal, o escritor espanhol Juan José Millás usou
uma metáfora entre a letra das palavras e seu significado, usando para isso a
imagem da gaiola e do pássaro. A gaiola, com seu engradado, é apenas a palavra
escrita ou o seu som; o pássaro é o significado. O perigo dos legalistas, como
a maioria dos magistrados do Supremo parece ser, é confundir o envoltório das
palavras da lei com a alma do que palpita dentro dela.
A sociedade –que possui um
radar especial para detectar as manobras em favor dos poderosos– aumenta a cada
dia o divórcio entre ela e aqueles que deveriam oferecer-lhe a garantia de uma
Justiça sem dois pesos e duas medidas. É um esgarçamento da credibilidade que
aumenta a cada dia entre o povo e seus representantes. Até onde pode levar essa
perda de fé na autoridade e como ela pode prejudicar a já frágil democracia
brasileira?
El País