O presidente Jair Bolsonaro em 28 de abril, quando pronunciou a frase: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre" — Foto: GloboNews |
Não é preciso muito esforço para entender os motivos. Um militar sem
formação em medicina ou epidemiologia ocupa interinamente o Ministério da Saúde
há 48 dias, depois que a pandemia derrubou dois ministros por divergências com
Bolsonaro. O isolamento social e as medidas restritivas não tiveram força
suficiente para deter o contágio – e o novo coronavírus encontrou no Brasil um
hábitat hospitaleiro.
O país não implementou um programa nacional de testes e rastreamento dos
infectados, essencial para a retomada segura das atividades. Faltam
equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde. Respiradores
mecânicos não chegam aonde são necessários. Mas o governo gastou recursos
distribuindo 4,4 milhões de comprimidos de cloroquina, droga sem eficácia
comprovada. Autoridades sanitárias investem um tempo precioso numa apresentação
à imprensa para justificar a medida estapafúrdia, como se o objetivo fosse
ganhar um debate nas redes sociais.
Por todo o país, governos estaduais e municipais
promovem reaberturas sem nenhum respaldo científico. Bares e praias estão
lotados no Rio de Janeiro, convivas conversam sem máscara em voz alta. O
campeonato carioca planeja retomar jogos de futebol com torcida. Tudo do
jeitinho que o vírus gosta para se alastrar.
No Distrito Federal, onde a epidemia ganhou impulso
recente e as mortes têm crescido em escalada ininterrupta, o governador Ibaneis
Rocha decretou calamidade pública para desrespeitar a Lei de Responsabilidade
Fiscal e manter acesso a recursos financeiros da União. Mas manteve intactos os
planos de reabertura total no início de agosto.
Depois dos estados do Norte, Nordeste e Sudeste, a
Covid-19 agora campeia solta por Sul e Centro-Oeste, além de cidades do
interior paulista, Paraná e Sul de Minas. Em Botucatu, estado de São Paulo, um
shopping center chegou ao absurdo de deixar os compradores entrarem em seus
corredores de carro para fazer compras nas lojas.
O maior estudo já realizado para verificar a
extensão do contágio no país – tecnicamente conhecida como “prevalência” –
verificou que algo como 3,8% dos brasileiros, ou 8 milhões, já tiveram contato
com o vírus. Se as conclusões da pesquisa comandada pela Universidade Federal
de Pelotas estiverem corretas, isso significa que mais de 95% da população
ainda é suscetível à doença.
Trata-se de um terreno ainda virgem para o vírus
explorar, no segundo hábitat mais hospitaleiro que encontrou até agora no
planeta, depois dos Estados Unidos. Os cientistas passarão os próximos anos
analisando os fatores que contribuíram para a tragédia nos dois países.
Será possível verificar até que ponto as declarações
de Donald Trump e Jair Bolsonaro contribuíram para disseminar o vírus. Ou se o
desprezo de ambos pelos fatos e pela ciência resultaram em mais mortes. Ou,
ainda, se há correlação entre a mortalidade e o apoio político aos dois em
regiões e grupos demográficos. Será possível, enfim, estabelecer se essa
correlação traduz uma relação de causa e efeito. A ciência dispõe de
ferramentas estatísticas para fazer tudo isso.
O mais importante, contudo, foge ao escopo da
ciência. O difícil é entender se tamanha cegueira coletiva deriva de algum
misterioso viés cognitivo, talvez um singular “viés de burrice” – ou se é de
outra ordem. O mais difícil é compreender o que leva um ser humano, diante de
tanta tragédia, de tanta tristeza, de tanta dor, a dizer frases como “e daí?”
ou “morra quem morrer”.
Por Helio Gurovitz
G1